sexta-feira, 4 de novembro de 2011

COISÁRIO V

 
As minhas gargalhadas
Ando quase sempre a rir. O sol, a chuva, o bolo de morango, a visita da minha avó, os ditongos do meu irmão, os golos no futebol, o meu anjo da guarda... tudo são razões para sorrir e dar uma gargalhada. Ainda bem que tenho dentes bonitos e brancos como as folhas do meu caderno, senão não sei se me ria tanto. Acho que sim, que ria. Porque o meu irmão ainda tem poucos dentes, o que não é lá muito bonito, e também ri muito.


A minha Laurinha
O meu coração ri-se sempre que a vê chegar e quase que chora sempre que a vê partir. A minha Laurinha não deve ser mesmo minha porque os pais vão buscá-la à escola todos os dias e levam-na. Mas isso é porque ainda não sabem que eu já sou um homenzinho e posso tomar conta dela. Tenho de deixar crescer mais um bocadinho este bigode que já sinto mas que ainda não se vê.
A Laurinha é loira e tem trancinhas presas com fitas que estão sempre a mudar de cor. Deve ter a ver com o vestido que sai por baixo do bibe. Tem sempre uns sapatos azuis claros. Nunca percebi porque é que não usa ténis. Se calhar é porque não joga à bola ou então porque gosta daquele barulho que os sapatos que são mesmo sapatos fazem a andar. Assim avisa-me sempre que está quase a chegar.
Os olhos da minha Laurinha (então se ela é minha se calhar os olhos também são meus...) às vezes parecem azuis e às vezes verdes. Depende da luz e do sítio. Quando estamos no jardim da escola e ela se senta na relva os olhos parecem mesmo verdes mas quando fomos à praia com a escola e ela deu um mergulho no mar os seus olhos saíram de lá completamente azuis.
Um dia ganho coragem e escrevo-lhe um bilhete. Ou uma carta porque num bilhete não deve caber tudo. Escrevo-lhe a dizer que é a coisa (espero que não se ofenda por lhe chamar coisa) mais bonita que já vi. Que o meu coração bate sem parar e salta sem trampolim sempre que a vejo. Que quando ela ri eu também rio, mesmo que a minha boca às vezes não mostre o sorriso por timidez. Que se ela não vem à escola o tempo demora tanto a passar que começo a procurar os meus cabelos brancos e a sentir dores nas costas. Que memorizo cada desenho ou letra que ela faz no caderno só porque sim. Que um dia falo com os pais dela e digo que ela é minha e que não a podem levar assim, todos os dias. Mas ainda não tive coragem. E mesmo assim acho que ela já sabe tudo isto. Porque sempre que eu olho para ela os seus olhos azuis ou verdes brilham mais e aí são as bochechas que mudam de cor e ficam vermelhas. As dela e as minhas.


A minha tartaruga
Está a ficar com umas bochechas enormes porque está cada vez mais gorda. A minha mãe diz sempre que não se alimentam tartarugas a pão de ló. Ou serão os burros? É a mesma coisa. Tenho de parar de dar-lhe bolos no intervalo. Porque a tartaruga está sempre na escola, fica no lago do jardim. Eu digo que ela é minha e acho que todos os outros dizem o mesmo. Gostava de ser como ela. Nunca tem pressa para nada. De certeza que não tem despertador. Nem tem horas para dar um passeio calmamente a volta ao lago, nem para dar um mergulho nem para procurar quem lhe dê bolos. É tudo quando ela quer. Só porque quer. E o melhor de tudo é o poder não querer nada. Nada de nada. Entra para a carapaça e fica lá dentro no seu quarto escuro. Gostava que o meu corpo também tivesse um quarto escuro para me esconder de tudo de vez em quando. Mas só um bocadinho. E depois, quando fosse ficando mais animado ia pondo as patinhas e a cabeça de fora como a tartaruga e voltava para perto da minha família e dos meus amigos. E, como tinha ficado com saudades, dava-lhes um abraço.

 
O meu abraço
Faz parte das minhas coisas mas depois quando o dou já não sei, acho que passa a fazer parte das coisas dos outros – as tais coisas do mundo.
A minha mãe diz sempre que o meu abraço é muito bom. O meu pai não diz nada até porque os nossos abraços são diferentes. Por isso existem, pelo menos, cinco tipos de abraços:
1.     O abraço que dou à minha mãe e à minha avó: abro muito os braços e, devagarinho, ponho-os à volta do pescoço. Depois vou apertando um bocadinho mais, conforme as saudades.
2.     O abraço que dou ao meu irmão: ponho os braços à volta da cintura dele e não aperto porque ainda é um bebé mas levanto-o do chão e dou voltas e voltas com ele nos meus braços até ficarmos tontos!
3.     O abraço que dou ao meu pai: damos só palmadas nas costas porque somos dois homens fortes.
4.     O abraço que vou dar à Laurinha: vai ser o maior de todos, de olhos fechados e para sempre.
5.     O abraço que dou aos meus amigos: é parecido com o que dou ao meu pai mas só damos quando estamos muito tempo sem nos vermos.
 

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

COISÁRIO IV

O meu coração
O vento que tenho cá dentro às vezes faz o meu coração bater muito depressa e às vezes mais devagar. Quando estou a dormir não sei se bate. Pelo menos sei que tem cuidado e não faz barulho para não me acordar.
Bate depressa quando corro, quando marco um golo na escola, quando me sento na aula ao lado da Laurinha, quando a minha mãe faz bolo de chocolate, quando o meu irmão mexe nos meus brinquedos, quando a professora de matemática me chama ao quadro, quando o meu pai diz
-       Já estás um homem.
Quando a minha mãe ainda me aperta o casaco à frente dos meus amigos, quando a Laurinha me empresta a borracha, quando toca a minha música preferida e quando o Sr. João se engana de propósito e põe duas bolas de gelado chocolate mesmo sabendo que eu só paguei uma!
Bate devagar quando vou tomar banho ainda meio a dormir, quando a minha avó conta a mesma história pela quarta vez, quando o meu irmão adormece a cheirar a água de colónia, quando chegamos a casa depois de uma viagem, quando a professora de português fica a falar sem parar só para se ouvir, quando a minha cabeça cai devagarinho na almofada e os lençóis abraçam o meu pescoço.
Bate depressa por coisas muito boas ou muito más. Bate devagar por coisas que me dão paz ou me aborrecem. Mas eu sinto de cada vez que ele bate. Ou
- Palpita!
Como diz a Laurinha.
- Porque o coração era incapaz de magoar...
Diz também a Laurinha.
Mal ela sabe que de cada vez que não se senta ao meu lado o coração bate com tanta força que magoa mesmo. Como se fosse uma corrida de pedras.


A minha rua
Já tentei contar as pedras mas perdi-me. Nas pedras e não no caminho que é sempre o mesmo e a direito. A minha rua vai do mercado à igreja. E a minha casa fica no meio, do lado esquerdo de quem vai neste sentido. Conheço e falo com todos os que vivem aqui: pessoas, animais e plantas. Não sei bem se são meus porque são sempre de outras pessoas também mas acho que sim. Acho que fazem parte do meu mundo e por isso são um bocadinho meus. Da igreja ao mercado, e neste sentido a minha casa fica do lado direito, demoro 5 minutos de skate. A minha avó diz que é falta de respeito virar as costas a Deus assim tão depressa. Mas eu acho que ele não se importa e às vezes até diz ao meu anjo da guarda para me dar um empurrãozinho. Nesses dias demoro 3 minutos.


O meu anjo da guarda
Gosta sempre de mim. Nas viagens de skate e até quando faço asneiras. Porque sabe que posso sempre ser melhor. E é por isso que anda sempre comigo. Apesar de nunca o ver. Acho que se esconde na minha sombra porque às vezes quando olho para o chão e vejo a minha forma cinzenta parece mesmo que tenho asas. Não são muito grandes mas parecem capazes de voar umas horas sem parar em nenhum  ramo ou chaminé para descansar.
O meu anjo da guarda, esse sim, tenho a certeza que é meu. E só meu. Apesar de não ser  uma coisa. Se alguém precisar eu empresto. Mas só empresto. É porque, mesmo que às vezes me arme em forte, sei que preciso dele. Para me fazer companhia quando estou triste, para me dar uma asa quando sinto que o caminho é grande demais para fazer sozinho ou até quando tenho de pedir desculpas a alguém. Está sempre comigo. E não acredito que goste tanto de alguém como gosta de mim.
Eu ensino-lhe o mundo. Ele ensina-me o céu. E assim parece que nos encontramos numa nuvem para jogar à bola e conversar. Ontem eu ensinei o meu anjo da guarda a jogar ao berlinde, por estranho que pareça ele nunca tinha feito isso. Fizemos uma pista enorme, a dar a volta à casa (quando eu preparava as pás e os ancinhos para entrar no quintal do vizinho o meu anjo fez um ar triste e eu dei a volta outra vez, para dentro do meu jardim. Deviam ver como ele ficou feliz!). Mais ao fim da tarde ele ensinou-me  a abrir os olhos quando o vento vem com tanta força que até parece dar sono aos olhos e acordar os cabelos.
É o meu melhor amigo. Mas eu acho  mesmo que era capaz de emprestá-lo à minha família ou aos meus amigos. Só por um bocadinho. Porque eu preciso mesmo dele. E acho que ele também precisa de mim. Pelo menos para se rir um bocadinho.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

COISAS QUE EU GOSTAVA DE SABER II

Se as camas têm pés, quem é que lhes corta as unhas?

COISÁRIO III

O meu quarto
Esqueci-me de contar. Estou no meu quarto a escrever o que se passa na minha cabeça. O meu quarto às vezes é tão desarrumado como as minhas ideias. Mas às vezes a minha mãe manda-me arrumar tudo. E eu arrumo. E aí volto a conseguir ver as paredes brancas como as folhas do meu caderno. Ainda nunca me mandaram arrumar a cabeça. Eu se calhar arrumava. Mas o pior é que depois podia não encontrar os meus pensamentos fechados em caixas, gavetas e armários que tinha de pôr dentro da minha cabeça. Pelo menos é o que me acontece no meu quarto. Nunca sei onde arrumei os jogos, os patins nem o skate. E são coisas maiores do que as ideias. Ou talvez não. Mas pelo menos fazem mais barulho quando se tropeça nelas. Pensando melhor, se calhar estou a arrumar tudo aqui no caderno. Mesmo sem ser por ordem alfabética, acho que é pela ordem que me vou lembrando, ou talvez do que está mais perto de mim para o que está mais longe. E assim começo a ter as minhas coisas arrumadas. Só espero não perder o caderno no meio da confusão do meu quarto nem noutro sítio qualquer em minha casa.


A minha casa
O meu quarto é grande e só para mim. O meu irmão tem outro. Apesar disso os meus pais estão sempre a dizer que passamos o tempo a tropeçar uns nos outros, que a casa é pequena para nós os quatro. Mas eu acho que é boa. Tem jardim e tudo. Acho que é aqui que começa o meu mundo. Como nas viagens. É daqui que parto para descobrir outros mundos que depois passam também a ser meus. Menos o jardim dos vizinhos que os meus pais me obrigam a devolver quase todos os dias - apesar de eu ter conquistado o espaço, construído um castelo, transformado a piscina num fosso e derrotado todos os inimigos (dois cães que são maiores do que parecem) com uma só arma (uma fatia de presunto).
Mas acho que é por vivermos numa casa pequena que somos tão unidos. Estamos sempre juntos e sentimos muito  a falta uns dos outros quando nos separamos entre o andar de cima e o de baixo. Por isso o jantar é o nosso melhor momento do dia apesar de já acontecer à noite. Principalmente no Verão que jantamos cá fora numa mesa de madeira mesmo por baixo do limoeiro que tem preguiça de dar limões e escolheu uma tarefa mais leve: fez um pacto com a Primavera e então só dá flores, o ano inteiro.


A minha família
No jardim não temos piscina. Eu acho que cabe, os meus pais dizem que não por causa das raízes do limoeiro e o meu irmão tem 1 ano portanto ainda não diz nada. Mas mesmo sem piscina estamos sempre frescos. É o que diz a minha avó que não vive connosco mas que nos visita todos os domingos à hora de almoço:
- Estão com um ar muito fresco.
Nunca percebi bem o que ela quer dizer. Provavelmente que a ventoinha que temos no tecto da sala e a sombra do limoeiro chegam e a piscina não faz falta. Ou então que temos sempre vento dentro de nós a soprar o calor para fora e a trazer as ideias para dentro que voltam a sair para fora de cada vez que conversamos ou que olhamos mesmo nos olhos uns dos outros. Acho que é isto. Eu e a minha família temos vento no coração. Obrigada avó.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

COISÁRIO II

O meu caderno
É aqui que estou a escrever. Tem uma capa azul, folhas lisas, brancas, e uma fita vermelha para marcar a página onde estou. Para não me perder no meio das minhas ideias. Ainda cheira a novo. Foi o meu pai que me deu este caderno para eu guardar e usar só quando tivesse mesmo alguma coisa importante para dizer. Não sei bem se é agora mas achei e acho que devo arriscar.
Tantas folhas brancas começam a assustar-me. Se eu desenhar só um pontinho numa folha, assim  








              
               .








e deixar tudo o resto em branco, é como se o pontinho fosse eu e o caderno o resto do mundo. Assim parece-me que as minhas coisas são pequenas e que o resto do mundo é grande. Mas agora, depois de continuar a escrever, percebo que afinal as minhas coisas e o meu mundo crescem a cada palavra, enquanto o tal de mundo de toda a gente é sempre do mesmo tamanho. Pelo menos visto ao longe. Apesar disto tenho a certeza que as minhas coisas nunca vão ser do tamanho do mundo, porque mesmo que eu encha este caderno de palavras e textos existirão sempre outros cadernos vazios. E depois desses outros. E ainda mais alguns. À espera de mais palavras e mais textos. Porquê? Porque as coisas são infinitas e o mundo também. Ou pelo menos as oportunidades que nos dá. A minha mãe sempre me disse:
- O mundo só é pequeno para quem tem ideias com perna curta.
Se eu tenho pernas compridas acho que as minhas ideias também devem ter. Acho que o que a minha mãe queria dizer é que se andarmos sempre a pensar e a imaginar vamos sempre descobrir coisas novas e que apesar de o mundo não esticar estica o conhecimento e a ideia que temos dele. Quem não inventa nem procura tem pé chato na cabeça e prefere ficar parado, julgando que o mundo é chato. Eu prefiro acreditar que existem sempre coisas mais importantes para encontrar e assim parto todos os dias para novas aventuras com os olhos bem abertos para escrever mais uma página do mundo que agora seguro nas mãos e parece mesmo um caderno. O meu caderno.


As minhas mãos
Quando uma mão escreve a outra segura no caderno para ter a certeza que a caneta não me escapa e risca a mesa branca. A minha mão também tem linhas, como o caderno mas nunca escrevi lá nada.
Uma vez uma senhora velhinha, sentada no degrau da fonte ao lado do mercado, leu a minha mão. Pelo menos foi o que ela disse. Porque eu encontrei as linhas mas nunca encontrei lá as letras. Ela disse que eu ia descobrir o mundo. O meu e o de todos. Não acreditei e durante uns minutos ainda achei que era o meu pai disfarçado de velhinha. Com um vestido castanho muito comprido e uma mantinha aos ombros, apesar do calor. Mas o meu pai não tem bigode e o dela parecia mesmo verdadeiro. Quando vinha para casa, carregado com a fruta que a minha mãe pediu para ir buscar, passei na mercearia para comprar doces e perguntei ao Sr. Juliano
- O que é que lê nas minhas mãos? E que tipo de letras são estas que eu não aprendo na escola? Vou descobrir o mundo?
- Encontraste a velhinha da fonte do mercado? Ela diz isso a toda a gente. Ela só quer dizer que podes fazer o que quiseres com as tuas mãos. No fundo, és tu que constróis o teu futuro.
Até me esqueci do chocolate que tinha ido comprar e vim-me logo embora, a correr para casa, para começar a construir o meu futuro. Seria em papel? Não, era fácil de ser destruído pelo vento e pela água. Talvez em ferro mas aí seria muito pesado e difícil de transportar e eu não sei se quero que o meu futuro aconteça sempre no mesmo sítio. Em madeira era bom, seria um futuro bonito, um futuro feito de caravelas mas sempre ameaçado pelo fogo. Hoje, e depois de muito pensar, descobri que vou construir o meu futuro com barro. Assim posso ir mudando sempre. E moldo-o com as minhas mãos. Se tiver a certeza, ponho no forno e fica sólido para sempre. Se não tiver a certeza vou mudando a forma com as mãos. Um dia transformo-o um avião, no outro num pássaro, no outro  numa casa... o importante é que saia das minhas mãos e entre na minha vida. Também é importante que caiba no meu quarto porque a minha mãe não gosta que eu espalhe coisas pela casa. Acho que nem mesmo bocadinhos de futuro.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

COISÁRIO I


Sempre que o sol sai o meu pai entra em casa com a lua. Mas a minha mãe diz que não tem ciúmes, acha que é uma paixão que vive ao longe e que todos os homens passam por isso mas poucos são os que partem para lá numa nave espacial. E mesmo quando conseguem lá chegar ela manda-os sempre embora. Deve gostar de estar sozinha, a flutuar no meio das estrelas para pensar, sossegada, no escuro. Fica lá em cima pasmada a olhar cá para baixo. Enquanto isso o meu pai poisa a pasta em cima da cadeira logo ao lado da porta. Dá um beijo à minha mãe que acabou de pôr baton para recebê-lo (não sei bem se a ele ou ao beijo). Abraça o meu irmão mais novo que corre para ele com mais certeza na cabeça do que nos passos. E dá-me uma palmada nas costas (dantes era uma festinha mas agora que já tenho 9 anos acho que é uma palmada, coisas de homens que me fazem parecer tão adulto que quase sinto o meu bigode a crescer) e pergunta-me:
- Como vão as coisas?
- As minhas coisas?
Pergunto sempre.
-       As tuas e as do mundo. Não são as mesmas?
Responde sempre o meu pai.
Todos os dias é a mesma conversa. Todos os dias eu fico sem resposta a pensar nisto mas hoje foi diferente. Ou melhor, está a ser diferente. Decidi escrever tudo aquilo em que comecei a pensar depois do meu pai ter dito o que diz sempre:
- As tuas e as do mundo. Não são as mesmas?
E é isso que estou a fazer. Aqui e agora. Desculpem se ficar confuso. Mas as minhas ideias desarrumam-se e as palavras correm mais depressa do que a minha caneta. Já tentei com o meu lápis e acontece exactamente a mesma coisa. Acho que já comecei a escrever sobre as minhas coisas. Ou serão as coisas do mundo? Não sei bem. Se calhar é melhor ir pensando uma a uma.

EXMOS. SRS DA COMISSÃO DE MORADORES DA FLORESTA

Venho por este meio comunicar que durante anos fui vítima de calúnias que passaram de geração em geração. Anos (ou séculos?) mais tarde chegou a hora de contar a verdade.
Tudo corria bem e eu era feliz. A floresta era verde, os pássaros cantavam e as flores cheiravam bem - se tudo tivesse continuado assim esta nunca teria sido uma das histórias mais famosas de sempre. Até que um dia chegaram aqueles a quem hoje, carinhosamente, chamam os 3 porquinhos. E a floresta passou a ser uma pocilga. O cheiro era horrível e só eles pareciam não notar. Nenhum outro animal vivia feliz. (Ainda hoje estou convencido ter sido por causa deles que tantos animais decidiram trocar a floresta pelo jardim zoológico. Era o chamado instinto de sobrevivência.) Mas eu fiquei e lutei pela natureza. Sempre foi esta a minha natureza.
Sim, admito. Eu soprei, incendiei e fiz tudo o que podia para destruir as suas casas. Mas não foi só por mim. Foi por todos nós. Pela floresta.
Eu fui o primeiro ani-ambientalista - o primeiro animal a tentar salvar o planeta. E por isso venho pedir a vossa ajuda para mudar a história, a minha história. Por isso peço-vos: assinem esta petição para eu passar de vilão a herói.
Assino a lista em primeiro lugar como espero vir a ser conhecido, um dia, depois de reposta a verdade,

O Lobo Bom

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

O FILHO DO MEIO

Um homem muito alto e uma mulher muito baixa tiveram um filho muito médio. Como gostavam de andar organizados por alturas, o miúdo, apesar de não ter irmãos, era sempre o filho do meio.

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

OS SAPATOS DO ÍNDIO OU HOMENAGEM À MUDANÇA

O índio subiu à árvore, desceu da árvore e abraçou-a. Mas nunca foi lá casa. Parece que a árvore era ou muito grande ou muito parada ou muito verde.
Então o índio foi para a cidade mas nunca foi lá prédio. Dava para muita gente.
O índio mergulhou no rio e nadou no rio. Mas nunca foi lá barco nem peixe. Parece que o rio era muito azul, ou muito fundo ou muito agitado.
Então o índio foi para a cidade mas nunca foi lá estrada. Levava a muitos caminhos.
O índio pulou no ar, voou no ar e soprou-o. Mas nunca foi lá avião nem pássaro. Parece que o ar era muito alto ou muito leve ou muito puro.
 
Porque na cidade o índio andava descalço e na árvore, no mar e no ar o índio usava sapatos pesados com nós apertados.





Foi por isso que o aconselhei a usar umas meias.

COISAS QUE TODA A GENTE DEVIA SABER III

Se os vizinhos não passassem o dia todo à janela a minha rua não seria tão convencida.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

QUASE UM PÁSSARO

A Dona Noémia andava distraída a passear no jardim quando deu uma turra nos joelhos do Sr. Samuel (ele era tão alto que andava sempre com a cabeça das nuvens e por isso era mais amigo dos pássaros do que das pessoas). Ela assustou-se e disse
Ai
Ele nem a ouviu lá em cima e disse
Piu
Ela não o ouviu mas eu acho que ele queria pedir desculpa.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

COISAS QUE TODA A GENTE DEVIA SABER II

Se os sapatos tivessem voz chamavam a polícia. Eles sabem que é arriscado viver tão perto de atacadores que, pelo nome, podem atacar a qualquer momento.

COISAS QUE TODA A GENTE DEVIA SABER

Se a lua fosse feita de tricot a noite não era fria.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

PENAS

Pouca gente sabe mas as primeiras galinhas eram cobertas de pêlo. Até que chegou o Inverno e tiveram medo que o sol não voltasse. Com a tristeza e as lágrimas, o pêlo caiu e ficaram cheias de penas até hoje.

E durante a noite, com a incerteza que o sol não volte para mais um dia, as suas penas ficam ainda maiores. Mas isso só vê quem dorme com as galinhas.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

PRÍNCIPE PICOTADO (IV)

- Oh, ai ficava sempre preso à mesma página, à mesma aventura e à mesma história. Acho que me aborrecia porque passava a ter sempre o mesmo mundo dentro de mim. Eu gosto de ser uma janela que muda sempre de sítio e abre espaço para coisas novas entrarem para a sala.

- Então gostas de ser assim?

- Sim. É assim tão estranho? Assim nunca me aborreço de mim porque sou sempre diferente de mim. Estou sempre a conhecer-me de novo. – respondeu o Picotado enquanto os seus pontos se moviam orgulhosamente com o vento que passava e arrastava o perfume  das maçãs do pomar mais próximo para dentro de si.

- Acho que tens razão. Queres apagar uns bocadinhos da minha linha? Também quero ter o mundo inteiro dentro de mim, estou cansada da minha barriga que de vez em quando dói para acusar chocolates a mais, do meu coração que insiste em correr mais depressa do que eu para não sair do mesmo sítio e dos meus braços que teimam em não ser asas e , apesar de não serem pés, me prendem ao chão. Quero ter a Primavera a nascer nos pés, quero que a música dos tambores circule nas minhas veias, quero olhar para mim e…

- Parece-me perigoso. Imagina que apagamos mais do que devíamos? Depois os traços não são suficientemente fortes para aguentar contigo. Se entra ar demais voas para tão longe que nunca mais ninguém te encontra. Nem sequer a nuvem mais aventureira. E se entra água demais vais parar ao fundo do mar, onde nem as âncoras dos submarinos chegam. – respondeu o Picotado cheio de certezas depois de muito pensar.

- Acho que tens razão. Então o mundo vai sempre passar-me ao lado. Nunca vai fazer parte de mim… - disse a Joalinha quase a chorar, a tremer a grande linha vermelha que desenhava a sua boca.

- Claro que vai Joalinha. Basta abrires bem os olhos.

E a Joalinha abriu muito bem os olhos.

E depois abriu mais ainda.

Quando achou que eles não podiam crescer mais ainda cresceram.

Assim.

A Joalinha ficou com uns olhos enormes. Capazes de ver o outro lado do mundo mesmo antes de rodar. E de repente encheu-se de pássaros que poisavam em flores e depois de nuvens que tapavam o céu azul e depois de um cor de rosa que anunciava o fim do dia e a hora de voltar para casa.

- Tenho os olhos picotados! – gritou a Joalinha feliz enquanto se aproximava do Picotado.

- É por isso que nos damos tão bem. – respondeu o Picotado enquanto lhe dava a mão.

(fim)

domingo, 10 de julho de 2011

PRÍNCIPE PICOTADO (III)

- Lá vai o Príncipe Picotado! – disse uma vez uma menina feita de linhas inteiras. Era a menina mais bonita que os seus pontos já tinham visto. Uma linha de perfeição que dava a volta ao quarteirão com o seu perfume. Tentando perder a vergonha e indo buscar  a coragem de quem tem o mundo a viajar pelo seu corpo, o Príncipe Picotado respondeu:

- Não sei se sou príncipe. Nem se algum dia vou chegar a ser. Mas picotado sou e chamo-me. Já deves ter ouvido dizer por aí que o mundo entra para dentro de mim. Assusto-te?

- Sim, já tinha ouvido. És famoso. Mas não, não me assustas nada! Até acho que és mais bonito do que os outros rapazes feitos de linhas inteiras e tortas. Pareces mais sensível e consigo ver o que se passa na tua cabeça e no teu coração. - respondeu a menina ao mesmo tempo que escondia a cara corada atrás da franja feita de linhas castanhas.

- Como te chamas? – perguntou o Picotado enquanto os seus pontos giravam, encolhiam e viravam-se para dentro como quem tem vergonha e acredita que se pode fechar e ser indecifrável por instantes.

- Joalinha – respondeu a menina feita de uma linha só e logo de seguida continuou a falar, cada vez mais depressa. – Tive uma ideia! E se eu fosse buscar um lápis e unisse os teus traços? Sou boa a desenho e  tenho a certeza de que assim ficavas mais protegido do frio do inverno que não tarda a chegar.

- Oh, o risco do lápis apaga-se num instante. Basta um banho.

- E se fizer com caneta?

- Esse sai facilmente com o sabonete… quando era mais novo não gostava de ser assim e já tentei de tudo.

- E se eu coser? – insistiu a Joalinha.

(continua)

sexta-feira, 8 de julho de 2011

O PRÍNCIPE PICOTADO (II)

Primeiro passaram as horas, depois os dias e depois os anos. O bébé primeiro passou a menino e depois passou a rapaz. Sempre picotado, o Picotado tinha a fragilidade das flores e dos momentos e foi  conquistando a altivez dos princípes porque dentro dele cabia um mundo.

- Lá vai o Príncipe Picotado! – diziam as pessoas feitas de linhas inteiras sempre que ele passava. Mas o Picotado não se importava. Até gostava. Porque ficava com todas as palavras para si porque entravam no seu corpo e na sua cabeça. E assim acabava por ser feito de tudo e não ser feito de nada. Porquê? Porque estava sempre a mudar: o vazio dava lugar ao cheio que voltava  a dar lugar ao vazio para encher outra vez. Complicado? Era mais ou menos assim:

O sol entrava no Picotado e tomava conta do seu corpo. Aquecia-o e enchia-o de luz. A noite também entrava no seu corpo e deixava-o com a calma e a tranquilidade do escuro onde só umas estrelas brilhavam sossegadas mas sem sono.

A água entrava para dentro dele com a espuma do duche que invadia o corpo pelas falhas da linha e a cada mergulho no mar enchia-se de sal (às vezes até levava uns peixinhos consigo que ficavam a nadar e a fazer corridas entre a barriga e os pés).

O vento entrava e rodopiava desarrumando-lhe tudo por instantes: o coração descia para o estômago que subia para o nariz que descia para os pés mas depois o vento lá encontrava a saída por outra falha na linha e tudo voltava ao normal.

Uma vez, na festa de 10 anos do rapaz Picotado, a música dos “Parabéns a Você” entrou dentro da sua cabeça. Primeiro pelo ouvido e depois por todo o lado, espalhando-se pelo corpo, sempre a tocar. Foi quando ele percebeu o que era sentir o ritmo e o seu corpo começou a dançar enquanto soprava as velas. Mesmo mais tarde, quando já estava a dormir, sentia uma nota de música a tentar encontrar o caminho de saída que fazia os seus pés dançarem com cócegas no colchão.

- Lá vai o Príncipe Picotado! – diziam os rapazes da sua escola enquanto tentavam marcar golos dentro do Picotado, chutando a bola com força.

- Lá vai o Príncipe Picotado! – diziam as velhinhas enquanto tentavam atirar pão para os pombos através do seu corpo.

Mas o Picotado nem ligava. Estes disparates entravam por um ponto e saíam pelo outro. Porque o Picotado era mesmo como um passador. Passava tudo lá para dentro e depois passava tudo cá para fora. Sons, cheiros, cores ou coisas. O que deixava a sra Linha muito preocupada:

- Há tantas guerras no mundo. E se uma entra dentro do nosso menino?

- Volta a sair. – respondia o sr Linha para acalmá-la.

E era verdade.

Os beijos que os namorados davam na rua entravam no seu corpo e alojavam-se no coração para saírem só quando via um passarinho a tremer de frio e o seu corpo passava a ser feito de penas. As velhinhas que passavam embrulhadas em xailes enchiam o seu picotado de lã e as crianças que passavam a correr preenchiam todo o seu espaço vazio com gargalhadas que só voltavam a sair lavadas pelas lágrimas da chuva.

(continua)

quinta-feira, 7 de julho de 2011

O PRÍNCIPE PICOTADO (I)

Tal como todos os dias, o sol nascia, os pássaros começavam a despentear as asas com o despertar dos ramos e o galo desafinava a mesma música de sempre no telhado da capoeira. Parecia um dia igual a todos os outros. Mas não, talvez não fosse. Ou isto não seria uma história.
 
Ainda o galo não tinha acabado de cantar já o sr e a sra Linha estavam a sair de casa a correr a toda a pressa. O sr Linha levava sacos gordos de pano azul claro pendurados no braço e a sra Linha levava uma grande barriga pendurada debaixo do peito. Os dois levavam nervos nas mãos que tremiam sem dar importância ao frio e um sorriso no coração que espreitava atrás das camisolas que se usam nas manhãs de inverno. Iam para o hospital. Iam ter o seu primeiro filho!

Mal chegaram ao hospital o bébé nasceu, cheio de pressa para ver os traços da cara dos seus pais. Entre batas, máscaras e luzes, a família Linha aumentou! Mas o bebé chorava a gaguejar e não era feito de uma linha só.

- O vosso filho não é feito de uma linha só! – disse o Dr. Linha da Vida pondo o bébé nos braços da sra Linha.

- Vamos chamar-lhe Picotado! – gritou o sr Linha entusiasmado!

- Por ser picotado, o Picotado é muito sensível. O mundo entra dentro dele. Devem protegê-lo sempre e vão ver que vai ser a criança mais feliz de todas. – acrescentou o Dr. Linha da Vida aos pais Linha que olhavam babados para o seu bébé, cheios de vontade de unir os pontos e assim criarem uma linha. Uma linha que o tornasse mais parecido com eles e que o protegesse do mundo. Mas rapidamente perceberam que isso era impossível.

(continua)

quarta-feira, 6 de julho de 2011

CABELOS DE CASTIGO

A menina não gostava de usar chapéu e tinha pena de todas as crianças que também tinham de usar. Ela achava que o chapéu punha os cabelos de castigo, não os deixava correr nem brincar e era como se para eles fosse sempre noite: estavam parados no escuro mesmo que não tivessem sono. Então a menina decidiu que quando fosse grande, mesmo muito grande, já não queria ser bailarina. Queria ser uma árvore para fazer sombra. Depois de pensar nisto sorriu porque a sua ideia era de se lhe tirar o chapéu.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

COISAS FEIAS

Menina a apontar
Mãe, olha aquele menino cheio de borbulhas e com os dentes amarelos.
Mãe a dizer
Não se aponta que é feio.
Menina a concordar
Pois é mãe, é muito feio.



sexta-feira, 3 de junho de 2011

A ÁRVORE

O Artur decidiu contar a história do limoeiro do seu jardim. Como a árvore só tem tronco, escreveu uma história sem pés nem cabeça.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

PESSOAS

As tristes olham para o chão;
As felizes olham para as outras;
As distraídas olham para o céu. Têm a certeza que já lá estiveram e é uma pena não se lembrarem do caminho.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

O SR. ONOFRE

Apresento-vos o Sr. Onofre. Dantes ele era a pessoa mais estranha cá da rua. Agora é o meu melhor amigo.

Sempre que o Sr. Onofre passava na rua toda a gente se ria e dizia
- Tem a mania das manias
Como não sabia o que isto queria dizer, segui-o e descobri que o Sr. Onofre:
Usa os quadrados de chocolate para fazer contas;
Nunca faz uma festa a um cão porque acha que não se fazem festas sem balões, bolos e presentes;
Sempre que dá um passo pede desculpa à sua sombra por estar a pisá-la.
Depois de seguir o Sr. Onofre percebi que ele tem toda a razão e que todos os meus vizinhos são estranhos.

Hoje somos muito amigos e sei que nunca nos vamos zangar. Porque o Sr. Onofre também acha que se as flores têm um pé deviam usar uma meia.

OS ANIMAIS E O CINEMA

Quando inventaram o cinema, a formiga ficou toda contente. Pelo menos até perceber que ela ficava grande mas os outros ficavam maiores ainda.
Quando inventaram o cinema com som, o papagaio ficou todo contente. Pelo menos até perceber que os outros animais tapavam os ouvidos.
Quando inventaram o cinema a cores, a zebra ficou toda contente. Pelo menos até perceber que ela ia ser sempre a preto e branco. Então corou de raiva e foi-se embora levando consigo todos os outros.




Foi então que chegaram as pessoas.

quinta-feira, 12 de maio de 2011

MÃOS GRANDES

Se eu tivesse mãos grandes pendurava um baloiço no indicador, fazia um bolo gigante que desse para toda a gente repetir, trocava a água do oceano Atlântico com a do Pacífico, escondia um piano para tu adivinhares em que mão estava, agarrava o vento e fazia trânsito de veleiros no rio, mudava a casa de sítio quase todos os dias, com uma mão fazia uma jangada e com outra a vela para tu passeares e andava sempre a fazer o pino só porque era fácil. Se eu tivesse mãos grandes podia fazer muitas coisas mas não podia escondê-las nos bolsos.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

O LATIFÚNDIO DOS BICHOS DA SEDA

O Gaspar montou a casa dos seus bichos da seda: uma caixa de sapatos (tamanho 34) forrada a folhas de amoreira. Mas eles não pareciam muito felizes. Achavam a caixa (a casa) muito pequena. E assim passavam o dia e a noite a sonhar com uma caixa de botas (tamanho 45) porque a sua ambição era viverem numa grande quinta.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

A ORDEM SEM SENTIDO



Agora admiro o abecedário.
Bocados de boca
Correm na corrente do corredor
Depois de dizerem disparates
Enquanto eu encanto e entretanto
Fico felizmente feliz
Ganhando grandes gotas e gomos.
Hoje há holofotes
Intensamente interessados e intrigados, informo-os:
José Joaquim Jardim Júnior
Labrador que ladra ao lado da ladra,
Meto mesmo muito medo.
Na nuvem de navios do nariz
Onde ontem olhei obtuso
Perdi a parte preta da pata
Que queria que quisesses quente,
Roída, rimada e reduzida.
Se sei sonhar sozinho?
Tento tudo, é tudo tão tentador
Uma unidade única.
Vocês vieram e viram.
Xaile xadrês ou o xilofone do Xico?
Zombo aos ziguezagues no zoo.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

MANIA DAS GRANDEZAS

O porco queria ser mais forte e por isso queria ser javali.
O gato queria ser mais corajoso e por isso queria ser pantera.
O pássaro queria ser mais respeitado e por isso queria ser águia.
O menino queria ser mais forte, corajoso e respeitado e por isso não queria ser homem.






Queria ser menino grande.

PÃOBALALÃO III

Longe dos assuntos da aldeia mas sem sair de lá, tudo correu como num verdadeiro Verão imaginado: o sol forte picava os corpos, os banhos no rio refrescavam histórias antigas e a família conhecia-se mais a cada minuto que passava e tinha mais saudades a cada minuto que se perdia e só voltaria no ano seguinte.

Mas no Verão o tempo corre sempre mais depressa do que no Inverno e as nuvens começavam a ser mais rápidas do que o sol que já tropeçava na preguiça. Quando chegou a hora da partida, a Baguette, a Torrada, as Migalhas e o Pão de Leite despediram-se do avô da Baguette, o Pão Ralado, que estava sempre preocupado com qualquer coisa. Primeiro era o caminho que era longo, depois seria a vida deles longe dos pais e depois seria uma aldeia quase vazia durante quase um ano até que seria quase verão quase outra vez mas ainda faltava demais.

Na ruela, o Pão Saloio e a Côdea acenavam sem parar enquanto o carro se preparava para voltar a vencer a estrada, apanhando-a desprevenida no sentido inverso ao da chegada, e o Pão Ralado dava as últimas recomendações para a viagem porque cada curva podia ser uma armadilha e cada recta uma ilusão (como é que a distância mais curta entre dois pontos podia afastar tanto uma família?).

Uns segundos depois e tudo voltou a ser como dantes.

É assim todos os verões na aldeia. Volta-se sempre ao princípio do que somos. E no princípio somos todos pão.



(fim)

terça-feira, 3 de maio de 2011

PÃOBALALÃO II

Dentro do carro estavam as suas Migalhas e o Pão de Leite! As Migalhas eram duas gémeas de 3 anos, pequeninas e envergonhadas, que faziam sons (música?) que se espalhavam pelo ar e eram impossíveis de apanhar ou varrer; o Pão de Leite tinha só uns meses e agarrava o biberon como os velhos agarram a bengala e como os jovens agarram um coração que não é o seu.

- Meus pãezinhos!

Gritou a Côdea, sem sequer dar atenção ao Torrada que nunca tinha visto, num acesso de esbanjamento de palavras que não conseguiu poupar para mais tarde.

- Finalmente conheço-os! De certeza que ainda não são baptizados! Vamos levá-los ao Pão de Deus imediatamente!

Continuou a mãe e avó Côdea. Era a primeira vez que via os netos (e que falava tanto). Nos outros verões a Baguette vinha sempre sozinha e os pãezinhos ficavam com o Torrada porque ainda eram pequenos. Faltava-lhes o fermento do tempo.

A avó Côdea agarrou nos pãezinhos, pô-los num grande cesto e levou-os à Igreja. A missa estava a acabar e encontraram o Papo Seco a descer a escadaria de dois degraus. O Pão Saloio ficou queimado de raiva, quase mais escuro do que o Torrada:o Papo Seco tinha tido uma paixão pela Côdea e, apesar de um casamento bem cozido, o Pão Saloio ainda ardia em ciúmes. 

(Era óbvio para o Papo Seco que o que a Côdea poupava em palavras ele poupava em emoções e seriam quase felizes no silêncio sem sobressaltos. Mas ela tinha ficado perdida de amores pelo míolo genuíno de que o Pão Saloio era feito - porque a Côdea sabia que a verdadeira beleza era a que estava por trás da capa estaladiça de qualquer pão - e assim acabou esta história que nunca começou). 

Romances à parte, o Pão de Deus baptizou os pãezinhos que choraram com a água, que mesmo benta era fria, e tinham medo de se transformarem em açorda. O Pão de Ló, que era tão doce que ajudava sempre na missa e atravessava as ruas com as velhinhas que tinham medo das pedras paradas sempre a pregarem partidas aos passos, agarrou logo nos pãezinhos e começou a cantar

- Pãobalalão,

cabeça de cão,

orelhas de gato

e um grande coração,

vai parar ao meio do chão

E fingiu que os deixava cair. Os pãezinhos pararam de chorar, a família estalou a rir e largou lágrimas de farinha. Partiram para casa e no caminho encontraram o Pão de Forma. Era o habitante mais tradicional e quadrado de toda a aldeia e ficou muito admirado com aquela família.

- São todos uns pães de mistura.

Resmungou ele entre a massa que lhe prendia os poucos dentes que lhe restavam mas os outros pães nem lhe ligaram. Sabiam perfeitamente que ele tinha mau miolo e, naquele momento, sentiam-se a mistura da mais pura felicidade. Depois o Pão de Forma passou pelo Pão de Alho e virou-lhe a cara antes que ele conseguisse dizer

- Olá, como está?

Foi muito mal educado mas é que o hálito do Pão de Alho conseguia ser mesmo assustador, por isso conta-se pela aldeia que nunca teve uma namorada e que só fala com outros pães por cartas ou por telefone.

(continua amanhã)

segunda-feira, 2 de maio de 2011

PÃOBALALÃO I

Todos os anos é a mesma coisa. O vento vai empurrando as nuvens devagarinho para outro lado, o sol espreita cada vez mais intrometido, até que entra mesmo no céu sobre as terras, e os pães que tentam a sorte no estrangeiro começam a chegar às aldeias de origem para visitarem as suas famílias de sempre.

- Ça va, papa?

Perguntou uma Baguette com um nariz empoleirado no orgulho de quem já viu o mundo e uma pronúnica arrevesada de quem esteve muito tempo a fermentar em França.

- Cevada? Então não sabes que somos feitos de trigo? Somos todos à antiga... Ai, como tu mudaste lá fora minha filha!

Respondeu um Pão Saloio ainda fresco, apesar de já ser de muitos ontens atrás, sentado sob o telheiro de uma casinha de pedra equecida 11 meses por ano.

- Trago aqui o meu Torrada. Finalmente conhecem o meu pão-metade! Ele veio conhecer a nossa família e a aldeia.

Continuou a Baguette, agora em português, que era a sua lingua de sempre, para que o pai percebesse, apesar dos soluços de sotaque que atacavam sem que ela conseguisse evitar.

- Ai tão escuro! Esqueceram-se dele no forno? Vou chamar a tua mãe. Côdeaaaaaaaaaa!

Gritava o Pão Saloio para chamar a mulher que apareceu sem sequer responder. A Côdea era tão forreta que nem sequer palavras gastava assim sem mais nem menos. Só em último caso. Quando a mãe Côdea apareceu a Baguette e o Torrada sorriram:

- Temos uma surpresa!



Disseram os dois em coro a apontar para o carro que vinha gasto dos quilómetros que tinha lutado, durante vários dias, com a estrada. 


(continua amanhã)

O PEIXE, A FORMIGA E A CENTOPEIA

Diz o peixe:
- Estou triste. A minha namorada deu-me com os pés!
Diz a formiga:
- Impossível! A Lúcia é uma sardinha.
Diz a centopeia:
- Vocês sabem lá o que é dar com os pés!

quinta-feira, 21 de abril de 2011

AUTO-RETRATO
















(Dou-te este auto-retrato para que não te esqueças de mim. Desculpa estar de costas mas fiquei corada por pensar em ti.)

quarta-feira, 13 de abril de 2011

O PRIMEIRO PRONOME REFLEXO

Uma vez o "Em" viu-se ao espelho e assim nasceu o "Me", o primeiro pronome reflexo (que obviamente não faz parte da gramática dos vampiros).


terça-feira, 12 de abril de 2011

BOA NOITE E UMA VÉNIA


 - Pai, és dono do circo?
Todos os anos a Rosa fazia a mesma pergunta quando ia acampar com os seus pais e os seus dois irmãos mais novos, gémeos. 
Todos os anos escolhiam um lugar novo - junto ao rio, no meio da floresta, mesmo a espreitar para a praia ou num monte para ficarem mais perto das estrelas do que do chão - mas o espectáculo era sempre o mesmo. Montavam várias tendas de todas as cores e acendiam uma grande fogueira no meio. A tenda das riscas azuis e amarelas era o quarto dos pais, a tenda cor-de-rosa era, claro, da Rosa, e a tenda verde, castanha e laranja  era dos gémeos.
Como o pai estava sempre muito atarefado a montar as tendas e nunca ouvia à primeira, a Rosa voltava sempre a perguntar:
- Pai, és o dono do circo?
E todos os anos o pai respondia:
- Sou e toca a trabalhar! Diz à mãe para dançar e aos gémeos para rugirem. Pode parecer mas não estamos de férias! O circo tem de funcionar!
- E eu? - perguntava a Rosa.
- Tu tens de atravessar o chão nesta linha sempre a direito.
- Mas eu não vejo nenhuma linha... - respondia a Rosa.
- Por isso é que é tão difícil. Os melhores equilibristas são aqueles que imaginam a linha que mais ninguém consegue ver.
E a Rosa lá ia, pé ante pé, com os braços abertos para se equilibrar com os dois pés num chão interminável mas que lhe parecia mesmo uma corda presa no ar.
No fim da noite, depois de se apagarem todas as luzes e até a fogueira, a Rosa ouvia sempre palmas. E, já no seu saco cama, fazia uma grande vénia para agradecer mais um dia que tinha sido um verdadeiro espectáculo.