segunda-feira, 17 de outubro de 2011

COISÁRIO IV

O meu coração
O vento que tenho cá dentro às vezes faz o meu coração bater muito depressa e às vezes mais devagar. Quando estou a dormir não sei se bate. Pelo menos sei que tem cuidado e não faz barulho para não me acordar.
Bate depressa quando corro, quando marco um golo na escola, quando me sento na aula ao lado da Laurinha, quando a minha mãe faz bolo de chocolate, quando o meu irmão mexe nos meus brinquedos, quando a professora de matemática me chama ao quadro, quando o meu pai diz
-       Já estás um homem.
Quando a minha mãe ainda me aperta o casaco à frente dos meus amigos, quando a Laurinha me empresta a borracha, quando toca a minha música preferida e quando o Sr. João se engana de propósito e põe duas bolas de gelado chocolate mesmo sabendo que eu só paguei uma!
Bate devagar quando vou tomar banho ainda meio a dormir, quando a minha avó conta a mesma história pela quarta vez, quando o meu irmão adormece a cheirar a água de colónia, quando chegamos a casa depois de uma viagem, quando a professora de português fica a falar sem parar só para se ouvir, quando a minha cabeça cai devagarinho na almofada e os lençóis abraçam o meu pescoço.
Bate depressa por coisas muito boas ou muito más. Bate devagar por coisas que me dão paz ou me aborrecem. Mas eu sinto de cada vez que ele bate. Ou
- Palpita!
Como diz a Laurinha.
- Porque o coração era incapaz de magoar...
Diz também a Laurinha.
Mal ela sabe que de cada vez que não se senta ao meu lado o coração bate com tanta força que magoa mesmo. Como se fosse uma corrida de pedras.


A minha rua
Já tentei contar as pedras mas perdi-me. Nas pedras e não no caminho que é sempre o mesmo e a direito. A minha rua vai do mercado à igreja. E a minha casa fica no meio, do lado esquerdo de quem vai neste sentido. Conheço e falo com todos os que vivem aqui: pessoas, animais e plantas. Não sei bem se são meus porque são sempre de outras pessoas também mas acho que sim. Acho que fazem parte do meu mundo e por isso são um bocadinho meus. Da igreja ao mercado, e neste sentido a minha casa fica do lado direito, demoro 5 minutos de skate. A minha avó diz que é falta de respeito virar as costas a Deus assim tão depressa. Mas eu acho que ele não se importa e às vezes até diz ao meu anjo da guarda para me dar um empurrãozinho. Nesses dias demoro 3 minutos.


O meu anjo da guarda
Gosta sempre de mim. Nas viagens de skate e até quando faço asneiras. Porque sabe que posso sempre ser melhor. E é por isso que anda sempre comigo. Apesar de nunca o ver. Acho que se esconde na minha sombra porque às vezes quando olho para o chão e vejo a minha forma cinzenta parece mesmo que tenho asas. Não são muito grandes mas parecem capazes de voar umas horas sem parar em nenhum  ramo ou chaminé para descansar.
O meu anjo da guarda, esse sim, tenho a certeza que é meu. E só meu. Apesar de não ser  uma coisa. Se alguém precisar eu empresto. Mas só empresto. É porque, mesmo que às vezes me arme em forte, sei que preciso dele. Para me fazer companhia quando estou triste, para me dar uma asa quando sinto que o caminho é grande demais para fazer sozinho ou até quando tenho de pedir desculpas a alguém. Está sempre comigo. E não acredito que goste tanto de alguém como gosta de mim.
Eu ensino-lhe o mundo. Ele ensina-me o céu. E assim parece que nos encontramos numa nuvem para jogar à bola e conversar. Ontem eu ensinei o meu anjo da guarda a jogar ao berlinde, por estranho que pareça ele nunca tinha feito isso. Fizemos uma pista enorme, a dar a volta à casa (quando eu preparava as pás e os ancinhos para entrar no quintal do vizinho o meu anjo fez um ar triste e eu dei a volta outra vez, para dentro do meu jardim. Deviam ver como ele ficou feliz!). Mais ao fim da tarde ele ensinou-me  a abrir os olhos quando o vento vem com tanta força que até parece dar sono aos olhos e acordar os cabelos.
É o meu melhor amigo. Mas eu acho  mesmo que era capaz de emprestá-lo à minha família ou aos meus amigos. Só por um bocadinho. Porque eu preciso mesmo dele. E acho que ele também precisa de mim. Pelo menos para se rir um bocadinho.

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