segunda-feira, 11 de julho de 2011

PRÍNCIPE PICOTADO (IV)

- Oh, ai ficava sempre preso à mesma página, à mesma aventura e à mesma história. Acho que me aborrecia porque passava a ter sempre o mesmo mundo dentro de mim. Eu gosto de ser uma janela que muda sempre de sítio e abre espaço para coisas novas entrarem para a sala.

- Então gostas de ser assim?

- Sim. É assim tão estranho? Assim nunca me aborreço de mim porque sou sempre diferente de mim. Estou sempre a conhecer-me de novo. – respondeu o Picotado enquanto os seus pontos se moviam orgulhosamente com o vento que passava e arrastava o perfume  das maçãs do pomar mais próximo para dentro de si.

- Acho que tens razão. Queres apagar uns bocadinhos da minha linha? Também quero ter o mundo inteiro dentro de mim, estou cansada da minha barriga que de vez em quando dói para acusar chocolates a mais, do meu coração que insiste em correr mais depressa do que eu para não sair do mesmo sítio e dos meus braços que teimam em não ser asas e , apesar de não serem pés, me prendem ao chão. Quero ter a Primavera a nascer nos pés, quero que a música dos tambores circule nas minhas veias, quero olhar para mim e…

- Parece-me perigoso. Imagina que apagamos mais do que devíamos? Depois os traços não são suficientemente fortes para aguentar contigo. Se entra ar demais voas para tão longe que nunca mais ninguém te encontra. Nem sequer a nuvem mais aventureira. E se entra água demais vais parar ao fundo do mar, onde nem as âncoras dos submarinos chegam. – respondeu o Picotado cheio de certezas depois de muito pensar.

- Acho que tens razão. Então o mundo vai sempre passar-me ao lado. Nunca vai fazer parte de mim… - disse a Joalinha quase a chorar, a tremer a grande linha vermelha que desenhava a sua boca.

- Claro que vai Joalinha. Basta abrires bem os olhos.

E a Joalinha abriu muito bem os olhos.

E depois abriu mais ainda.

Quando achou que eles não podiam crescer mais ainda cresceram.

Assim.

A Joalinha ficou com uns olhos enormes. Capazes de ver o outro lado do mundo mesmo antes de rodar. E de repente encheu-se de pássaros que poisavam em flores e depois de nuvens que tapavam o céu azul e depois de um cor de rosa que anunciava o fim do dia e a hora de voltar para casa.

- Tenho os olhos picotados! – gritou a Joalinha feliz enquanto se aproximava do Picotado.

- É por isso que nos damos tão bem. – respondeu o Picotado enquanto lhe dava a mão.

(fim)

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