sexta-feira, 8 de julho de 2011

O PRÍNCIPE PICOTADO (II)

Primeiro passaram as horas, depois os dias e depois os anos. O bébé primeiro passou a menino e depois passou a rapaz. Sempre picotado, o Picotado tinha a fragilidade das flores e dos momentos e foi  conquistando a altivez dos princípes porque dentro dele cabia um mundo.

- Lá vai o Príncipe Picotado! – diziam as pessoas feitas de linhas inteiras sempre que ele passava. Mas o Picotado não se importava. Até gostava. Porque ficava com todas as palavras para si porque entravam no seu corpo e na sua cabeça. E assim acabava por ser feito de tudo e não ser feito de nada. Porquê? Porque estava sempre a mudar: o vazio dava lugar ao cheio que voltava  a dar lugar ao vazio para encher outra vez. Complicado? Era mais ou menos assim:

O sol entrava no Picotado e tomava conta do seu corpo. Aquecia-o e enchia-o de luz. A noite também entrava no seu corpo e deixava-o com a calma e a tranquilidade do escuro onde só umas estrelas brilhavam sossegadas mas sem sono.

A água entrava para dentro dele com a espuma do duche que invadia o corpo pelas falhas da linha e a cada mergulho no mar enchia-se de sal (às vezes até levava uns peixinhos consigo que ficavam a nadar e a fazer corridas entre a barriga e os pés).

O vento entrava e rodopiava desarrumando-lhe tudo por instantes: o coração descia para o estômago que subia para o nariz que descia para os pés mas depois o vento lá encontrava a saída por outra falha na linha e tudo voltava ao normal.

Uma vez, na festa de 10 anos do rapaz Picotado, a música dos “Parabéns a Você” entrou dentro da sua cabeça. Primeiro pelo ouvido e depois por todo o lado, espalhando-se pelo corpo, sempre a tocar. Foi quando ele percebeu o que era sentir o ritmo e o seu corpo começou a dançar enquanto soprava as velas. Mesmo mais tarde, quando já estava a dormir, sentia uma nota de música a tentar encontrar o caminho de saída que fazia os seus pés dançarem com cócegas no colchão.

- Lá vai o Príncipe Picotado! – diziam os rapazes da sua escola enquanto tentavam marcar golos dentro do Picotado, chutando a bola com força.

- Lá vai o Príncipe Picotado! – diziam as velhinhas enquanto tentavam atirar pão para os pombos através do seu corpo.

Mas o Picotado nem ligava. Estes disparates entravam por um ponto e saíam pelo outro. Porque o Picotado era mesmo como um passador. Passava tudo lá para dentro e depois passava tudo cá para fora. Sons, cheiros, cores ou coisas. O que deixava a sra Linha muito preocupada:

- Há tantas guerras no mundo. E se uma entra dentro do nosso menino?

- Volta a sair. – respondia o sr Linha para acalmá-la.

E era verdade.

Os beijos que os namorados davam na rua entravam no seu corpo e alojavam-se no coração para saírem só quando via um passarinho a tremer de frio e o seu corpo passava a ser feito de penas. As velhinhas que passavam embrulhadas em xailes enchiam o seu picotado de lã e as crianças que passavam a correr preenchiam todo o seu espaço vazio com gargalhadas que só voltavam a sair lavadas pelas lágrimas da chuva.

(continua)

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