sexta-feira, 4 de novembro de 2011

COISÁRIO V

 
As minhas gargalhadas
Ando quase sempre a rir. O sol, a chuva, o bolo de morango, a visita da minha avó, os ditongos do meu irmão, os golos no futebol, o meu anjo da guarda... tudo são razões para sorrir e dar uma gargalhada. Ainda bem que tenho dentes bonitos e brancos como as folhas do meu caderno, senão não sei se me ria tanto. Acho que sim, que ria. Porque o meu irmão ainda tem poucos dentes, o que não é lá muito bonito, e também ri muito.


A minha Laurinha
O meu coração ri-se sempre que a vê chegar e quase que chora sempre que a vê partir. A minha Laurinha não deve ser mesmo minha porque os pais vão buscá-la à escola todos os dias e levam-na. Mas isso é porque ainda não sabem que eu já sou um homenzinho e posso tomar conta dela. Tenho de deixar crescer mais um bocadinho este bigode que já sinto mas que ainda não se vê.
A Laurinha é loira e tem trancinhas presas com fitas que estão sempre a mudar de cor. Deve ter a ver com o vestido que sai por baixo do bibe. Tem sempre uns sapatos azuis claros. Nunca percebi porque é que não usa ténis. Se calhar é porque não joga à bola ou então porque gosta daquele barulho que os sapatos que são mesmo sapatos fazem a andar. Assim avisa-me sempre que está quase a chegar.
Os olhos da minha Laurinha (então se ela é minha se calhar os olhos também são meus...) às vezes parecem azuis e às vezes verdes. Depende da luz e do sítio. Quando estamos no jardim da escola e ela se senta na relva os olhos parecem mesmo verdes mas quando fomos à praia com a escola e ela deu um mergulho no mar os seus olhos saíram de lá completamente azuis.
Um dia ganho coragem e escrevo-lhe um bilhete. Ou uma carta porque num bilhete não deve caber tudo. Escrevo-lhe a dizer que é a coisa (espero que não se ofenda por lhe chamar coisa) mais bonita que já vi. Que o meu coração bate sem parar e salta sem trampolim sempre que a vejo. Que quando ela ri eu também rio, mesmo que a minha boca às vezes não mostre o sorriso por timidez. Que se ela não vem à escola o tempo demora tanto a passar que começo a procurar os meus cabelos brancos e a sentir dores nas costas. Que memorizo cada desenho ou letra que ela faz no caderno só porque sim. Que um dia falo com os pais dela e digo que ela é minha e que não a podem levar assim, todos os dias. Mas ainda não tive coragem. E mesmo assim acho que ela já sabe tudo isto. Porque sempre que eu olho para ela os seus olhos azuis ou verdes brilham mais e aí são as bochechas que mudam de cor e ficam vermelhas. As dela e as minhas.


A minha tartaruga
Está a ficar com umas bochechas enormes porque está cada vez mais gorda. A minha mãe diz sempre que não se alimentam tartarugas a pão de ló. Ou serão os burros? É a mesma coisa. Tenho de parar de dar-lhe bolos no intervalo. Porque a tartaruga está sempre na escola, fica no lago do jardim. Eu digo que ela é minha e acho que todos os outros dizem o mesmo. Gostava de ser como ela. Nunca tem pressa para nada. De certeza que não tem despertador. Nem tem horas para dar um passeio calmamente a volta ao lago, nem para dar um mergulho nem para procurar quem lhe dê bolos. É tudo quando ela quer. Só porque quer. E o melhor de tudo é o poder não querer nada. Nada de nada. Entra para a carapaça e fica lá dentro no seu quarto escuro. Gostava que o meu corpo também tivesse um quarto escuro para me esconder de tudo de vez em quando. Mas só um bocadinho. E depois, quando fosse ficando mais animado ia pondo as patinhas e a cabeça de fora como a tartaruga e voltava para perto da minha família e dos meus amigos. E, como tinha ficado com saudades, dava-lhes um abraço.

 
O meu abraço
Faz parte das minhas coisas mas depois quando o dou já não sei, acho que passa a fazer parte das coisas dos outros – as tais coisas do mundo.
A minha mãe diz sempre que o meu abraço é muito bom. O meu pai não diz nada até porque os nossos abraços são diferentes. Por isso existem, pelo menos, cinco tipos de abraços:
1.     O abraço que dou à minha mãe e à minha avó: abro muito os braços e, devagarinho, ponho-os à volta do pescoço. Depois vou apertando um bocadinho mais, conforme as saudades.
2.     O abraço que dou ao meu irmão: ponho os braços à volta da cintura dele e não aperto porque ainda é um bebé mas levanto-o do chão e dou voltas e voltas com ele nos meus braços até ficarmos tontos!
3.     O abraço que dou ao meu pai: damos só palmadas nas costas porque somos dois homens fortes.
4.     O abraço que vou dar à Laurinha: vai ser o maior de todos, de olhos fechados e para sempre.
5.     O abraço que dou aos meus amigos: é parecido com o que dou ao meu pai mas só damos quando estamos muito tempo sem nos vermos.
 

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