sexta-feira, 22 de julho de 2011

COISAS QUE TODA A GENTE DEVIA SABER II

Se os sapatos tivessem voz chamavam a polícia. Eles sabem que é arriscado viver tão perto de atacadores que, pelo nome, podem atacar a qualquer momento.

COISAS QUE TODA A GENTE DEVIA SABER

Se a lua fosse feita de tricot a noite não era fria.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

PENAS

Pouca gente sabe mas as primeiras galinhas eram cobertas de pêlo. Até que chegou o Inverno e tiveram medo que o sol não voltasse. Com a tristeza e as lágrimas, o pêlo caiu e ficaram cheias de penas até hoje.

E durante a noite, com a incerteza que o sol não volte para mais um dia, as suas penas ficam ainda maiores. Mas isso só vê quem dorme com as galinhas.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

PRÍNCIPE PICOTADO (IV)

- Oh, ai ficava sempre preso à mesma página, à mesma aventura e à mesma história. Acho que me aborrecia porque passava a ter sempre o mesmo mundo dentro de mim. Eu gosto de ser uma janela que muda sempre de sítio e abre espaço para coisas novas entrarem para a sala.

- Então gostas de ser assim?

- Sim. É assim tão estranho? Assim nunca me aborreço de mim porque sou sempre diferente de mim. Estou sempre a conhecer-me de novo. – respondeu o Picotado enquanto os seus pontos se moviam orgulhosamente com o vento que passava e arrastava o perfume  das maçãs do pomar mais próximo para dentro de si.

- Acho que tens razão. Queres apagar uns bocadinhos da minha linha? Também quero ter o mundo inteiro dentro de mim, estou cansada da minha barriga que de vez em quando dói para acusar chocolates a mais, do meu coração que insiste em correr mais depressa do que eu para não sair do mesmo sítio e dos meus braços que teimam em não ser asas e , apesar de não serem pés, me prendem ao chão. Quero ter a Primavera a nascer nos pés, quero que a música dos tambores circule nas minhas veias, quero olhar para mim e…

- Parece-me perigoso. Imagina que apagamos mais do que devíamos? Depois os traços não são suficientemente fortes para aguentar contigo. Se entra ar demais voas para tão longe que nunca mais ninguém te encontra. Nem sequer a nuvem mais aventureira. E se entra água demais vais parar ao fundo do mar, onde nem as âncoras dos submarinos chegam. – respondeu o Picotado cheio de certezas depois de muito pensar.

- Acho que tens razão. Então o mundo vai sempre passar-me ao lado. Nunca vai fazer parte de mim… - disse a Joalinha quase a chorar, a tremer a grande linha vermelha que desenhava a sua boca.

- Claro que vai Joalinha. Basta abrires bem os olhos.

E a Joalinha abriu muito bem os olhos.

E depois abriu mais ainda.

Quando achou que eles não podiam crescer mais ainda cresceram.

Assim.

A Joalinha ficou com uns olhos enormes. Capazes de ver o outro lado do mundo mesmo antes de rodar. E de repente encheu-se de pássaros que poisavam em flores e depois de nuvens que tapavam o céu azul e depois de um cor de rosa que anunciava o fim do dia e a hora de voltar para casa.

- Tenho os olhos picotados! – gritou a Joalinha feliz enquanto se aproximava do Picotado.

- É por isso que nos damos tão bem. – respondeu o Picotado enquanto lhe dava a mão.

(fim)

domingo, 10 de julho de 2011

PRÍNCIPE PICOTADO (III)

- Lá vai o Príncipe Picotado! – disse uma vez uma menina feita de linhas inteiras. Era a menina mais bonita que os seus pontos já tinham visto. Uma linha de perfeição que dava a volta ao quarteirão com o seu perfume. Tentando perder a vergonha e indo buscar  a coragem de quem tem o mundo a viajar pelo seu corpo, o Príncipe Picotado respondeu:

- Não sei se sou príncipe. Nem se algum dia vou chegar a ser. Mas picotado sou e chamo-me. Já deves ter ouvido dizer por aí que o mundo entra para dentro de mim. Assusto-te?

- Sim, já tinha ouvido. És famoso. Mas não, não me assustas nada! Até acho que és mais bonito do que os outros rapazes feitos de linhas inteiras e tortas. Pareces mais sensível e consigo ver o que se passa na tua cabeça e no teu coração. - respondeu a menina ao mesmo tempo que escondia a cara corada atrás da franja feita de linhas castanhas.

- Como te chamas? – perguntou o Picotado enquanto os seus pontos giravam, encolhiam e viravam-se para dentro como quem tem vergonha e acredita que se pode fechar e ser indecifrável por instantes.

- Joalinha – respondeu a menina feita de uma linha só e logo de seguida continuou a falar, cada vez mais depressa. – Tive uma ideia! E se eu fosse buscar um lápis e unisse os teus traços? Sou boa a desenho e  tenho a certeza de que assim ficavas mais protegido do frio do inverno que não tarda a chegar.

- Oh, o risco do lápis apaga-se num instante. Basta um banho.

- E se fizer com caneta?

- Esse sai facilmente com o sabonete… quando era mais novo não gostava de ser assim e já tentei de tudo.

- E se eu coser? – insistiu a Joalinha.

(continua)

sexta-feira, 8 de julho de 2011

O PRÍNCIPE PICOTADO (II)

Primeiro passaram as horas, depois os dias e depois os anos. O bébé primeiro passou a menino e depois passou a rapaz. Sempre picotado, o Picotado tinha a fragilidade das flores e dos momentos e foi  conquistando a altivez dos princípes porque dentro dele cabia um mundo.

- Lá vai o Príncipe Picotado! – diziam as pessoas feitas de linhas inteiras sempre que ele passava. Mas o Picotado não se importava. Até gostava. Porque ficava com todas as palavras para si porque entravam no seu corpo e na sua cabeça. E assim acabava por ser feito de tudo e não ser feito de nada. Porquê? Porque estava sempre a mudar: o vazio dava lugar ao cheio que voltava  a dar lugar ao vazio para encher outra vez. Complicado? Era mais ou menos assim:

O sol entrava no Picotado e tomava conta do seu corpo. Aquecia-o e enchia-o de luz. A noite também entrava no seu corpo e deixava-o com a calma e a tranquilidade do escuro onde só umas estrelas brilhavam sossegadas mas sem sono.

A água entrava para dentro dele com a espuma do duche que invadia o corpo pelas falhas da linha e a cada mergulho no mar enchia-se de sal (às vezes até levava uns peixinhos consigo que ficavam a nadar e a fazer corridas entre a barriga e os pés).

O vento entrava e rodopiava desarrumando-lhe tudo por instantes: o coração descia para o estômago que subia para o nariz que descia para os pés mas depois o vento lá encontrava a saída por outra falha na linha e tudo voltava ao normal.

Uma vez, na festa de 10 anos do rapaz Picotado, a música dos “Parabéns a Você” entrou dentro da sua cabeça. Primeiro pelo ouvido e depois por todo o lado, espalhando-se pelo corpo, sempre a tocar. Foi quando ele percebeu o que era sentir o ritmo e o seu corpo começou a dançar enquanto soprava as velas. Mesmo mais tarde, quando já estava a dormir, sentia uma nota de música a tentar encontrar o caminho de saída que fazia os seus pés dançarem com cócegas no colchão.

- Lá vai o Príncipe Picotado! – diziam os rapazes da sua escola enquanto tentavam marcar golos dentro do Picotado, chutando a bola com força.

- Lá vai o Príncipe Picotado! – diziam as velhinhas enquanto tentavam atirar pão para os pombos através do seu corpo.

Mas o Picotado nem ligava. Estes disparates entravam por um ponto e saíam pelo outro. Porque o Picotado era mesmo como um passador. Passava tudo lá para dentro e depois passava tudo cá para fora. Sons, cheiros, cores ou coisas. O que deixava a sra Linha muito preocupada:

- Há tantas guerras no mundo. E se uma entra dentro do nosso menino?

- Volta a sair. – respondia o sr Linha para acalmá-la.

E era verdade.

Os beijos que os namorados davam na rua entravam no seu corpo e alojavam-se no coração para saírem só quando via um passarinho a tremer de frio e o seu corpo passava a ser feito de penas. As velhinhas que passavam embrulhadas em xailes enchiam o seu picotado de lã e as crianças que passavam a correr preenchiam todo o seu espaço vazio com gargalhadas que só voltavam a sair lavadas pelas lágrimas da chuva.

(continua)

quinta-feira, 7 de julho de 2011

O PRÍNCIPE PICOTADO (I)

Tal como todos os dias, o sol nascia, os pássaros começavam a despentear as asas com o despertar dos ramos e o galo desafinava a mesma música de sempre no telhado da capoeira. Parecia um dia igual a todos os outros. Mas não, talvez não fosse. Ou isto não seria uma história.
 
Ainda o galo não tinha acabado de cantar já o sr e a sra Linha estavam a sair de casa a correr a toda a pressa. O sr Linha levava sacos gordos de pano azul claro pendurados no braço e a sra Linha levava uma grande barriga pendurada debaixo do peito. Os dois levavam nervos nas mãos que tremiam sem dar importância ao frio e um sorriso no coração que espreitava atrás das camisolas que se usam nas manhãs de inverno. Iam para o hospital. Iam ter o seu primeiro filho!

Mal chegaram ao hospital o bébé nasceu, cheio de pressa para ver os traços da cara dos seus pais. Entre batas, máscaras e luzes, a família Linha aumentou! Mas o bebé chorava a gaguejar e não era feito de uma linha só.

- O vosso filho não é feito de uma linha só! – disse o Dr. Linha da Vida pondo o bébé nos braços da sra Linha.

- Vamos chamar-lhe Picotado! – gritou o sr Linha entusiasmado!

- Por ser picotado, o Picotado é muito sensível. O mundo entra dentro dele. Devem protegê-lo sempre e vão ver que vai ser a criança mais feliz de todas. – acrescentou o Dr. Linha da Vida aos pais Linha que olhavam babados para o seu bébé, cheios de vontade de unir os pontos e assim criarem uma linha. Uma linha que o tornasse mais parecido com eles e que o protegesse do mundo. Mas rapidamente perceberam que isso era impossível.

(continua)

quarta-feira, 6 de julho de 2011

CABELOS DE CASTIGO

A menina não gostava de usar chapéu e tinha pena de todas as crianças que também tinham de usar. Ela achava que o chapéu punha os cabelos de castigo, não os deixava correr nem brincar e era como se para eles fosse sempre noite: estavam parados no escuro mesmo que não tivessem sono. Então a menina decidiu que quando fosse grande, mesmo muito grande, já não queria ser bailarina. Queria ser uma árvore para fazer sombra. Depois de pensar nisto sorriu porque a sua ideia era de se lhe tirar o chapéu.